sábado, 14 de abril de 2012

Como a História faz o historiador? (Resenha)

por Edson Borges Filadelfo*
 Resenha do artigo  de Antoine Prost: Como a História faz o historiador?

Transcrição da ultima aula dada aos alunos de Sorbonne, o texto do professor Antoine Prost, longe de ser um testemunho de um professor em fim de carreira, é uma conclusão e extensão da obra “Doze lições sobre a história”, lançado em 1996. Prost propõe uma análise dos impactos do oficio do historiador na vida profissional e cultural dos que se ocupam de tal tarefa, ou seja, da influência de seu oficio à sua personalidade.
Tratando a estruturação da temporalidade, a primeira lição da história é a condição do tempo, no qual as coisas se iniciam e se findam e, ainda que se trabalhe através de um passeio pelos tempos, não se pode reconstruir o passado, senão compreendê-lo. Em suas palavras,
“o historiador se move como que naturalmente em uma temporalidade que ele recorta em períodos, que ele reconstitui e percorre ao seu gosto; o tempo, como continuidade de ritmo desigual, mas inexorável; o tempo que não se pode parar, nem fazer voltar atrás, nem avançar” (p.8)

    Essa continuidade do tempo, dados os consentimentos ao tempo, é a base para o entendimento da história e da compreensão do presente, assim como proposição do futuro. Contudo, a passagem de uma temporalidade que compreende o tempo contínuo, para uma emergente que identifica suas descontinuidades (ou rupturas), é primordial uma vez que depende de nossa representação do tempo a compreensão dos fenômenos históricos.
O papel ou o dever da ciência história, a qual é atribuída erroneamente o “dever de memória”, suscita uma reflexão do papel social dos historiadores. Quatro razões são explicitadas para o cuidado com má interpretação da diferenciação conceitual da memória e da história:
1.      A necessidade de eternizar acontecimentos na busca incansável pela memória coloca o historiador no papel de legitimador de fatos e comemorações cívicas.

 2.       O desejo do dever de memória proíbe o esquecimento de fatos isolados, quando na verdade todo e qualquer fato tem importância na cadencia da história. Na verdade “a história ordena o esquecimento seletivo, mas não inelutável” (p.11)

 3.      O saudosismo e a afetividade do dever de memória promove uma leitura romântica, por vezes capciosa da história, podendo e incitar sentimentos de revolta ou indignação.
 4.      A contradição do dever de memória na compreensão do particular e do universal promove contraditórias abordagens de ideais e valores, uma vez que o caráter particularista da memória tenta suplantar o universal e o necessário para a coesão social. Dessa forma a passagem da noção de raízes (particular) para a de valores (universal) constitui grave erro lógico (p.12).
No item ‘a História, escola de civismo’ (p. 13), o professor Prost explicita a necessidade da história em trabalhar um tempo maior do que o fato ou evento. Para ele a passagem pelo passado e a pergunta sobre as causas e consequências é o que move a história. Na verdade a pergunta acerca das conseqüências é mais fácil de responder devido à maior visualização das mesmas nas marcas do tempo. Em suas palavras:
“Para explicar a história, o historiador é conduzido a explicar as causas e condições múltiplas, a hierarquizá-las, a avaliá-las de alguma forma. Sua lógica é raramente linear, mas frequentemente, ela entrecruza séries diferentes de temporalidades desiguais”. (p.14)
O Oficio do historiador é marcado também pelas responsabilidades e pelas coações com as quais deve se relacionar, buscando cruzar informações e interferências no sentido de desviar de uma compreensão teleguiada. Suscitando a não-neutralidade da ciência História – e consequentemente dos historiadores – Prost descreve as variações de abordagem e suas relações com as linhas de pesquisa histórica e suas implicações políticas. Dessa forma a história é colocada como escola de civismo, ou instrumento de educação política.
Ao transcrever um texto de uma conferência de 1907, criado por um republicano chamado Seignobos, que buscava justificar o ensino de história no segmento secundário de ensino, o autor propões dois contra-exemplos da validade das afirmações e proposições de Seignobos:
1.      Nem todos os historiadores são reformistas.
2.      A história não retoma seu curso.

História e construção do historiador
 
 Nessa parte do texto, o professor Antoine Prost recoloca a afirmação que a história molda o historiador. Para confirmar sua tese, ele divide sua explicação em duas linhas:
·         A do Universal. Ao se deparar com um novo tema, o historiador se coloca em primeira pessoa, recriando e revivendo o tempo. Como se transportasse para a época estudada. Ele vive e sente o que ocorreu. Remontando a história ele adquire a experiência de outras vidas. Mas o historiador não é romancista, ou seja, não deixa livre por completo sua imaginação, devendo organizá-la, controlá-la pela erudição. A experiência de outras vidas possibilita uma visão mais ampla dos acontecimentos. A experiência desenvolve muitas atitudes, mas “ela é ao mesmo tempo, simpatia e vigilância” (p. 19).
·         O Pessoal. Ao descobrir quem é (ou quem poderia ser) a partir da análise outras vidas e experiências, o historiador se depara com sua condição humana no tempo. Cada homem depende de suas condições históricas concretas (p.19). Ao tentar construir a história percebe que está sendo construído por ela e não pode se livrar disso, o exercício de uma responsabilidade. O engajamento na história permite a compreensão das lógicas da ação coletiva. Mas esse engajamento deve ser mediado pela reflexão intelectual da história para a manutenção da consciência.
A “história é a construção da humanidade em cada homem” (p. 20). Essa afirmação é aberta ao uso em toda disciplina reflexiva, como a filosofia ou a literatura. Prost finaliza invertendo a frase que diz que ‘enquanto houver homens haverá história’ afirmando que “enquanto houver história, haverá homens” (p.21) e que a história é um trabalho para humanizar a humanidade em cada um e em todos”.

Comentários e ideação
 Ler o texto de Prost promove dois sentimentos:
O primeiro tem origem estritamente profissional. Um texto que friamente afirma ser orientado pela epistemologia, cujo autor afirma categoricamente que irá tentar responder à questão proposta através de uma análise critica suscita um dever de responsabilidade por parte do leitor, que deverá, assim, estar preparado para um bombardeiro de teorias e conceitos. Nessa primeira abordagem, vale-se dizer que a busca pelas respostas às questões propostas - a saber a influência do oficio do historiador na moldagem de sua personalidade -  e o delineamento dos caminhos percorridos pelo autor são os pontos –chave da leitura. Ademais, um fichamento completo pressupõe uma leitura comprometida. Dessa forma, conceitos como tempo e temporalidades, história e memória, experiência e reflexão vêem à tona.
Já o segundo sentimento que emerge da leitura de Prost é a curiosidade. Mergulhar e navegar no oceano do passado, viver outras vidas e percebe-se no outro, mais que um sentimento de alteridade, constitui uma fascinação pela criação da imaginação e pela necessidade da experiência. Em tempos modernos, podemos aqui fazer menção das redes sociais, nas quais é possível vasculhar os espaços e os tempos do outro numa busca talvez travessa de conhecer sua intimidade, compreender seu “perfil”, suas afirmações, os depoimentos de terceiros acerca dos tais. Ocorre que os personagens do passado não construíram um perfil estruturado, deixaram apenas indícios que o historiador deve percorrer; ler; ouvir; interpretar. E nessa trajetória, que remonta o caminho do tesouro das histórias de piratas, muitos percalços podem aparecer. E nesse caminho nos espreita a memória com sua sede insaciável de romantizar e eternizar os momentos. E essa batalha entre o consciente e a imaginação parece promover o prazer da investigação do passado. É como em um livro, do qual a leitura torna impossível não reconstruir todo um mundo para viver a estória.
Ler Prost (permita-me um uma confissão informal) até as 4h da manhã e perde-se uma multidão de propostas imaginárias de comentários e ideações que se perdem a cada parágrafo que abre novas possibilidades é um desafio teórico e metodológico. Recordo-me dos estudos recentes sobre a evolução do conceito de Idade Média e a fase idealista nas quais os estados autoritários nazi-fascistas tentaram sobrepor a memória à história, construindo seus heróis; num instante já estou penando em Câmara Cascudo e sua efervescente busca pela compreensão da cultura brasileira pela via folclore. Horas tento me focar nas citações de Le Goff e Marc Bloch e descobrir a influência da Escola dos Annales na historiografia de Antoine Prost, logo me perco Memórias Póstumas de Braz Cubas e antes de descobrir quem sou, finalmente lembro que imaginação e racionalidade se aliam em Chico Buarque de Holanda que já cantava:
“No peito a saudade cativa
faz força pro tempo parar,
mas eis que chega a roda viva
e carrega a saudade pra lá.”
Chico Buarque, Roda Viva.


*Geógrafoe Licenciado em Geografia pela UERJ, professor da Rede Estadual e do Muncipio do Rio de Janeiro. Licanciando em História pela UNIRIO/CEDERJ/UAB.

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