Por Edson Borges Vicente em 15 de outubro e 2009
Era manhã fria embora o inverno estivesse arrumando as malas. Estava toda a turma assentada em filas indianas, como era de costume, já que a densidade demográfica era de quase uma criança por metro quadrado naquela sala de aula de colégio público da periférica cidade metropolitana de Nova Iguaçu. A escola ficava no bairro periurbano de Cabuçu, onde a proposta construtivista já tinha chegado aos ouvidos dos professores, mas a disposição em círculo da era fisicamente inviável.
A quinta série tinha novo nome: sexto ano do Ensino Fundamental e também novo habitante: Tiago Fernandes, garoto franzino cujo sobrenome espanhol havia sido herdado em tempos em que José Schazneger poderia ser considerado genuinamente brasileiro em uma família pobre da Baixada Fluminense.
Entre um mapa e outro o professor de geografia falava da importância do estudo na vida das pessoas e com veemência associava a escolaridade às oportunidades de bom emprego e dignidade de vida. Certo momento, enquanto o mestre falava da relação dos meios de comunicação com o conhecimento dos lugares, como filmes e documentários televisivos e dos textos e imagens de jornais e revistas, Tiago interrompeu:
- Professor, o senhor viu um monte de professores apanhando na televisão?
- Quando você viu isso? - Indagou o professor.
- No jornal. Passou uns policiais batendo nos professores lá na cidade – afirmou o menino.
Para evitar a mudança de rumo da aula o professor desconversou:
– Eles já pediram desculpas.
- Pediram nada – retrucou o garoto –, o cara do jornal disse que era por que os professores ganham muito pouco pra dar aula. Menos que prefeito, vereador e presidente – completou.
- Isso é verdade - respondeu o docente. – Mas isso não quer dizer que ele trabalhe menos. O professor é um profissional de suma importância para a sociedade. Todos, antes de serem ‘alguém na vida’, passaram primeiro pelo professor: presidente, prefeito, vereador e também os médicos, engenheiros e advogados – explicou.
- Eu também ouvi isso na televisão. Tem professor pra criança, pra adolescente e pra adulto, né! Até pro juiz tem professor. Deve ter que estudar muito pra ser professor, não é professor? – perguntou Tiago.
- É claro – não exitou o educador –, você estuda nove anos no Ensino Fundamental, três no Ensino médio e mais um no Curso Normal para dar aulas até a quarta série / quinto ano. Para dar aulas do sexto ano, como a turma de vocês, e para o Ensino Médio / Segundo Grau, tem que cursar uma faculdade e estudar mais quatro anos.
- Nossa! - espantou-se o jovem – Isso tudo? E pra dar aulas pros médicos e pro juiz? Questionou o aluno.
- Bom, dependendo da faculdade (que é onde os médicos estudam), o professor tem que estudar mais um ou dois anos na especialização, dois anos no mestrado e mais quatro no doutorado.
- Chega! – implorou o moleque – Mais pra dar aulas pra quinta série só precisa dos quatro anos na faculdade e pronto, certo? Indagou-lhe.
- Não necessariamente. Muitos professores estudam mais que isso. Na verdade, o professor nunca pode parar de estudar. Ele precisa sempre se atualizar – complementou o mestre.
Um silêncio se fez na sala...
Após um tempo e alguns cochichos ecoando entre as paredes da sala 10, Mariana – menina espevitada e falante – se intrometeu no papo que já rendia dez minutos da aula.
- Eu também soube que os professores apanharam. Mas soube no rádio. Eu gosto de rádio pra ouvir música, sabe! - continuou... – na verdade eu gosto mesmo é de pagode, mas minha mãe ouve musica internacional, ‘da antiga’, e colocou na JB que de vez enquanto tem jornal e ai...
- Já chega! - gritou Fernanda – a encrenqueira da sala. O que não tinha de corpo tinha de marra – eu vi uma foto no jornal. Meu pai não compra jornal sempre, mas ele pára na banca da praça pra ler as capas penduradas. Quando eu estou com ele é ‘um saco’, tenho que esperar. Eu vi em uns três jornais diferentes – concluiu.
Percebendo a ânsia dos pequenos o professor tentou trazer a discussão para o âmbito do tema estudado e interrompeu a discussão dizendo:
- Estão vendo como é necessário estudar? Ler jornal, assistir TV e ouvir rádio são formas de comunicação e a Geografia também utiliza-as nos seus estudos.
Gilson, um moleque que só sentava no fundo da sala e vivia a comer biscoitos e mastigar com a boca aberta comentou, num tom sarcástico:
- Estudar pra ser alguém na vida, blá-blá-blá... Todo mundo já sabe dessa história. Até o salário do professor saiu no jornal: seisentos reais. E, no final, ele ainda tem que pagar a passagem do bolso dele - enfatizou.
Um espanto sucedido de mais um silêncio na classe.
- Meu irmão não estudou e ganha mais que isso – afirmou Gilson - Ele trabalha de camelô e nem paga passagem. Os motoristas deixam ele entrar pela porta de trás. Quando ele vende picolé na praia ele ganha até gorjeta dos turistas – acrescentou o pequeno.
Sem saber o que fazer o professor tentou persuadi-lo informando que esse salário baixo é pago pelo estado, mas que há municípios que pagam bem e dão a passagem, mas a euforia era geral.
- E ainda apanha da polícia – lembrou Tiago.
- Minha professora da quarta série trabalha pra prefeitura de Nilópolis, onde eu morava, e também reclama do salário – acrescentou Fernanda.
- Eu ouvi na rádio que o presidente quase não estudou e o dono do salão de barbeiro perto da casa da minha tia virou vereador. – complementou Mariana.
Antes que o mestre pudesse interferir, Tiago perguntou:
- Alguém aqui tem coragem de estudar a vida toda pra ser professor?
Bate o sinal e, na correria, esvai-se pelo ar aquela conversa.
2 comentários:
Essa abordagem é muito interessante, e menos complexa do que muitos propoem. Professor deve ser respeitado,sem dúvida alguma. Um profissional de extrema importância na construção de saberes e valores na sociedade.
belo texto,Junior.
Obrigado Duke. Isso retrata de forma cômica o valor que a educação está recebendo das autoridades ultimamente.
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