Brincadeiras simples que dependem apenas de um pouco de 'dignidade'.
Por Edson Borges Vicente - Geoeducador (2008)
Quase cinco anos pesquisando a Baixada Fluminense me concederam alguns poucos, mas pra mim importantes, conhecimentos sobre essa área tão amada e odiada, tão valorizada (culturalmente) e relegada ao desleixo das lideranças.Esse paradoxo – bom / ruim – paraíso / purgatório sempre encanta e mistifica o sentido da (re)criação da História e das estórias percebidas por aqueles que ousam entender um pouco desse povo, desse território e desse lugar.Desde a nostalgia dos tempos de Iguaçu Velha, com seus marcos histórico-culturais (Fazenda São Bernardino, Cemitério dos escravos, Porto de Iguassú) até a revolta da chacina, das epidemias de dengue, do vergonhoso IDH (Índice de Desenvolvimento humano), muitos temas florescem quando resolvemos escrever sobre a Baixada.
Dentre essa gama de fatos, casos, fotos e causos, Nova Iguaçu se destaca enquanto fonte de criação, desenvolvimento e “retalhação” de identidades. Sem dúvida, essa amada cidade é o berço de grande parte das que hoje compõe a Baixada Fluminense e fonte de inspiração de inúmeros cientistas sociais, historiadores, geógrafos aventureiros desbravadores do conhecimento local / regional.
E a primeira coisa que se pensa para iniciar uma exposição de um dado conhecimento é em explicar os primórdios, desvelar o começo de tudo... Nesse sentido, um resgate histórico é sempre bem vindo, pois parece que há uma linha do tempo contínua, inabalável e certa tal qual o positivismo clássico nos ensinou. Digo, porém, que nem sempre o “começo” é o caminho mais certo pra se “começar”, que quando tratamos de identidade, de temas sócio-espaciais (pois tenho que puxar brasa pra minha sardinha de geógrafo), é importante passear pelos: fim, começo e meio; É justo ser trans-temporal, trans-escalar, ter a sensibilidade para perceber os tempos e os espaços simultaneamente.
Peço licença com atraso para embriagar-me com essa filosofia não vã, pois decidi iniciar uma série de artigos que tratam do tema: identidade sócio-espacial de Nova Iguaçu, ou seja, almejo refletir sobre a história e a geografia de minha amada cidade em uma perspectiva da identidade do povo com a cidade e com os bairros e as transformações que vem ocorrendo recentemente. Meu foco principal é a URG Cabuçu (que compõe bairros como Cabuçu, Três Marias, Laranjeiras, Valverde, Marapicu, etc). Meu acompanhamento da turma A do Projovem Cabuçu nesses últimos meses de 2008, em decorrência da participação de minha noiva Fernanda Bastos e sua integração à Escola Agencia de Comunicação, contribuíram para elevar meu desejo por também participar desse processo de (re)descoberta da identidade do meu bairro, realimentando o engajamento da pesquisa que venho desenvolvendo e que se insere numa lógica parecida.
O passo inicial seria voltar ao passado tratando da colonização da Baixada pelos portugueses, destrinchando os fatos que se sucederam até o desenvolvimento da Grande Vila de Iguassú, as mudanças causadas pela ferrovia e a ascensão de Maxambomba até elevar-se a Nova Iguaçu, perpassando os tempos até chegar à configuração atual de nossa cidade, com nossos dilemas atuais e nossas perspectivas para o futuro. Acontece que, um momento me chamou a atenção, um momento que tive a sorte de registrar e que desviou meu pensamento para o hoje, mudou minha trajetória de análise e me fez refletir a partir de um retrocesso, invertendo as lógicas.
Um ponto em um universo me fez parar, apreciar um ou dois minutos um momento histórico que será lembrado mais tarde como, talvez até, um marco. Uma mudança nos processos de formação identitária dos bairros que vem passando nos últimos dois anos, por um processo de mudança espacial e social. Trata-se das obras de infra-estrutura que tem mudado a paisagem e a identidade da população com os bairros. O paradoxo começa a tender mais pro lado da paixão e afirmação com o lugar e cada vez menos identificando-se com sua rejeição. As pessoas estão em processo de elevação da auto-estima de sua identificação com seus lugares de vida, num fenômeno chamado de “Topofilia” (paixão pelo espaço termo criado pelo Geógrafo oriental Fu tuan). Cresce o numero dos que se orgulham de dizer que “moram em Cabuçu”.
Há uns quatro anos (2004), iniciei uma pesquisa sobre o Projeto Iguaçu Nova (Atualmente chamado “Cidade Paradiso”). Na época, especulava-se a construção do Parque Aquático Paradiso Clube em Cabuçu e nem de longe se tinha a noção (por parte dos “cabuçuenses”) da magnitude das transformações que o projeto geraria no bairro. Um parque aquático, que, na verdade, seria o embrião de uma mini-cidade para aproximadamente 150 mil pessoas era inimaginável, utopia, motivo de piada. Quase ninguém tinha esperança de melhorias em, pelo menos, dez anos uma vez que Cabuçu já havia décadas de abandono por parte do poder público, resultando na degradação dos poucos pontos de lazer (como a praça) que existiam.
Imagens de crianças brincando de barquinho em poças d’água, descalços à beira de valas negras, largadas ao descaso sempre foram fáceis de captar. Em minha experiência na Assistência Social do município com crianças em risco social, quando estive à frente do PETI (programa de Erradicação do Trabalho Infantil - pólo Cabuçu) e conheci de perto, em meio à precariedade, a criatividade dos pequeninos, não cheguei a imaginar que uma transformação espacial provocaria uma mudança tão radical nos hábitos das crianças, na brincadeira das crianças.
Porém, diante dos nossos olhos (meus e de Fernanda) em um passeio descomprometido estava uma transformação em curso, talvez uma realização de um sonho (da criança ou mesmo de seus pais), a possibilidade de uma brincadeira que só depende de uma coisa: asfalto. De certo que uma brincadeira – andar de patins – é impossível de ser realizada na lama, em terrenos esburacados e pedregosos, como se configurou desde sempre, a grande maioria das ruas de Cabuçu. E esse gesto simples, essa brincadeira – andar de patins – demonstrou ser muito mais do que uma brincadeira, mas de uma ação cidadã. Poucos dias após a finalização do asfaltamento de uma das ruas da primeira etapa das obras em Cabuçu, aquela criança pode não ter compreendido, mas estava diante de um momento histórico, de um marco histórico, de uma mudança de hábitos. E a expectativa de que isso se universalize no bairro ficou à mostra, mexendo com os sonhos dos que passavam naquele momento e que esperam ansiosamente serem alcançados pelo direito o qual aquela criança estava usufruindo, o de brincar de ser cidadã.
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