sábado, 12 de maio de 2012

Reflexão sobre a relação entre memória e história: interpretações sobre o passado recente do Brasil e a abertura dos arquivos secretos da ditadura.

 Por Edson Borges Filadelfo*

 
Em um período no qual a história assiste uma ascensão pretensiosa e tendenciosa da memória na busca pela “fiel verdade” sobre o passado recente, em especial ao período da ditadura militar (1964 até 1985), cabe aos historiadores o cuidado no trato dos documentos secretos que passam por um processo de abertura e disponibilização com suas transferências para os arquivos públicos. Uma vez públicos (e isso é um processo que está em andamento), eles estarão disponíveis para todo e qualquer cidadão brasileiro e os relatos orais provenientes de interrogatórios, redações oficiais, planejamentos de operações e decisões governamentais e das autoridades militares suscitarão, de um lado, a interpretação literal dos mesmos, como verdade absoluta e acrítica do senso comum ou sensacionalista da mídia de massas e, de outro, a análise criteriosa (e para tanto, relativista e crítica) da História.

É comum assistirmos em jornais, principalmente em reportagens baseadas em relatos de testemunhas ou vítimas de maus tratos na ditadura, expressões como “lembrar é resistir”, “a verdade tem que vir à tona” e “por que os torturados iriam mentir?”. Em recente pesquisa de vídeos no You Tube (se me permitem usar a primeira pessoa) algo me chamou a atenção. Antes de assistir a uma parte da série de reportagens do SBT Repórter intitulada “Pelos Porões da Ditadura” (durante a espera pelo carregamento do vídeo), resolvi instintivamente observar os comentários dos internautas. Uma colocação em poucas palavras se destacou: “para que nunca se esqueça”. Ora, Joutard citando Paul Ri­coeur, ressalta que “há um fenômeno de ‘reconhecimento’. Mas, sem paradoxo algum, o que se faz constitutivo da memória é o “esquecimento” (JOURTAD, p. 223, grifo do autor). Dom mesmo modo, ao assistir reportagens, sobretudo televisivas (as que se utilizam do áudio-visual com destaque para a sonoplastia e os filtros de imagens) que retratam a ditadura pela via da entrevista, a idéia que se propaga é que a memória traz à tona toda a “verdade”. Contudo, para Jourtad
 “A memória sabe também transformar, consciente ou in­conscientemente, o passado em função do presente, apresentando a tendência particular de embelezar este passado. Ela se define ain­da pela capacidade de recorrer ao simbólico e por sua aptidão para criar mitos, que não são visões falsas da realidade, mas uma outra maneira de descrever o real, uma outra forma de verdade”. (p.224).
O repórter Roberto Cabrini, ao entrevistar o agente João Lucena Leal, acusado de torturar dezenas de pessoas, sobretudo presos políticos durante a ditadura, afirma que “ele é capaz de narrar seus atos na ditadura, com coragem, sinceridade e riqueza de detalhes” (SBT Repórter). Em outra parte do documentário, complementa que “documentos e depoimentos resgatam dias sombrios” e “lembranças que marcam”. Desta forma a matéria jornalista supõe-se isenta de parcialidade, utilizando-se de fontes escritas (com destaque para matérias de impressos) e orais. Contudo, deposita na Memória todo o mérito do “esclarecimento” do passado.
Para parte dos historiadores (os que se opõe à história oral), a verdade só será revelada com a abertura completa dos arquivos secretos, pois os documentos escritos têm valor superior aos relatos orais. Contudo, segundo essa lógica, muitos problemas são postos ao historiador “descobridor” do passado: o primeiro, consenso entre historiadores, jornalistas e qualquer cidadão é o perigo do “saneamento” da documentação antes de sua disponibilização. O segundo e o maior problema como afirma Carlos Fico (Blog Brasil recente), é que os documentos “não são propriamente um testemunho da verdade. Eles são expressão do arbítrio”. Desse modo é impossível chegar à “verdade” através da documentação oficial. Resta então partir por outro caminho.
Partindo da noção de “esquecimento” e distorção da Memória (Joutard, p. 223) e da impossibilidade da historiografia centrada nos documentos escritos em relevar “todo” passado, já que “os documentos escritos tradicionais são incapazes de dar conta das grandes catástrofes humanas do século, no que elas têm de indi­zível, a violência e a desumanização absolutas”. (op cit, p. 229), é necessário um esforço teórico-metodológico no sentido de ampliar o alcance das pesquisas historiográficas do Brasil recente através da abertura dos arquivos e tomar o cuidado necessário com as certas interpretações superficiais e transformadoras da memória. É necessária a compreensão de que a superação da ambiguidade entre memória e história reside nas derivações memorialísticas, sendo que “o trabalho — e tam­bém o dever — do historiador é fazer da memória um objeto da história para expor o seu caráter construído, revelando as suas fra­quezas e a sua instrumentalização” (op cit. 231). Sendo assim, negar o papel da história oral é supor que a história tradicional é suficiente para suprir toda a necessidade documental no mínimo colocando a História em uma posição tão pretensiosa do que se acusa a memória.
Para Joutard, é necessária uma reconciliação entre História e Memória e essa “reconciliação começa com este mútuo reconhecimento dos li­mites da memória e da história: investir-se, uma e outra, de modés­tia, e saber que suas aproximações do passado são parciais” (p. 233). Desse modo as pesquisas devem conciliar o tratamento dos textos oficiais e também dos relatos orais, sobretudo dos sujeitos coadjuvantes do processo. Discursos prontos de autoridades pré-programadas ou testemunhos com risco de manipulação pelos “escrivãos” ou, pior, adquiridos pela via da tortura não são uma fonte muito confiável para a pesquisa histórica, a não ser para – parafraseando Joutard -revelar-lhes em sua fragilidade e construção ideológica. Desse modo escutar os sujeitos marginalizados por décadas de “esquecimento” faz-se necessário.
Os dois campos (Memória e História) “se fortalecem a partir da mútua colaboração” (Joutard, p. 233). Antes de serem negligenciados pela História, “as incontáveis vítimas das diversas opressões não têm o que temer da história, que irá validar o essencial de sua palavra, mas sim de toda memória não submetida à crítica histórica. (op. cit.). A memória “faz escutar outras vozes que iluminam os fragmentos de realidades passadas” (op. cit., p. 234)

Referências Bibliográficas.

CABRINI. Roberto. Nos Porões da Ditadura. In: SBT Repórter. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=xY5bBPr4XwQ acessado em acessado em 14 de abril de 2012.
CABRINI. Roberto. Nos Porões da Ditadura. In: SBT Repórter. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=ds1gIlxZLDs acessado em acessado em 14 de abril de 2012.
Dossiê de João Lucena Leal – disponível em http://www.torturanuncamais-rj.org.br/denuncias.asp?Coddenuncia=89&ecg= acessado em 14 de abril de 2012.

FICO, Carlos. Arquivos Secretos da Ditadura. In Blog www.brasilrecente.com  disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=rnm39vW4c5g&feature=player_embedded
 

* Geógrafo pela UERJ, professor das redes do Estado e da Cidade do Rio de Janeiro e graduando em História pela UNIRIO.

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