Em um período no qual a história assiste uma ascensão pretensiosa
e tendenciosa da memória na busca pela “fiel verdade” sobre o passado recente,
em especial ao período da ditadura militar (1964 até 1985), cabe aos historiadores o cuidado no trato
dos documentos secretos que passam por um processo de abertura e
disponibilização com suas transferências para os arquivos públicos. Uma vez
públicos (e isso é um processo que está em andamento), eles estarão disponíveis
para todo e qualquer cidadão brasileiro e os relatos orais provenientes de interrogatórios,
redações oficiais, planejamentos de operações e decisões governamentais e das
autoridades militares suscitarão, de um lado, a interpretação literal dos
mesmos, como verdade absoluta e acrítica do senso comum ou sensacionalista da
mídia de massas e, de outro, a análise criteriosa (e para tanto, relativista e
crítica) da História.
É comum assistirmos em jornais,
principalmente em reportagens baseadas em relatos de testemunhas ou vítimas de
maus tratos na ditadura, expressões como “lembrar é resistir”, “a verdade tem
que vir à tona” e “por que os torturados iriam mentir?”. Em recente pesquisa de vídeos no You
Tube (se me permitem usar a primeira pessoa) algo me chamou a atenção. Antes de
assistir a uma parte da série de reportagens do SBT Repórter intitulada “Pelos
Porões da Ditadura” (durante a espera pelo carregamento do vídeo), resolvi
instintivamente observar os comentários dos internautas. Uma colocação em
poucas palavras se destacou: “para que nunca se esqueça”. Ora, Joutard citando Paul Ricoeur,
ressalta que “há um fenômeno de ‘reconhecimento’.
Mas, sem paradoxo algum, o que se faz constitutivo da memória é o
“esquecimento” (JOURTAD, p. 223, grifo do autor). Dom mesmo modo, ao
assistir reportagens, sobretudo televisivas (as que se utilizam do áudio-visual
com destaque para a sonoplastia e os filtros de imagens) que retratam a
ditadura pela via da entrevista, a idéia que se propaga é que a memória traz à
tona toda a “verdade”. Contudo, para Jourtad
“A memória sabe
também transformar, consciente ou inconscientemente, o passado em função do
presente, apresentando a tendência particular de embelezar este passado. Ela se
define ainda pela capacidade de recorrer ao simbólico e por sua aptidão para
criar mitos, que não são visões falsas da realidade, mas uma outra maneira de
descrever o real, uma outra forma de verdade”. (p.224).
O
repórter Roberto Cabrini, ao entrevistar o agente João Lucena Leal, acusado de
torturar dezenas de pessoas, sobretudo presos políticos durante a ditadura,
afirma que “ele é capaz de narrar seus atos na ditadura, com coragem, sinceridade
e riqueza de detalhes” (SBT Repórter). Em outra parte do documentário,
complementa que “documentos e depoimentos resgatam dias sombrios” e “lembranças
que marcam”. Desta forma a matéria jornalista supõe-se isenta de parcialidade,
utilizando-se de fontes escritas (com destaque para matérias de impressos) e
orais. Contudo, deposita na Memória todo o mérito do “esclarecimento” do
passado.
Para
parte dos historiadores (os que se opõe à história oral), a verdade só será
revelada com a abertura completa dos arquivos secretos, pois os documentos
escritos têm valor superior aos relatos orais. Contudo, segundo essa lógica,
muitos problemas são postos ao historiador “descobridor” do passado: o
primeiro, consenso entre historiadores, jornalistas e qualquer cidadão é o
perigo do “saneamento” da documentação antes de sua disponibilização. O segundo
e o maior problema como afirma Carlos Fico (Blog Brasil recente), é que os
documentos “não são propriamente um testemunho da verdade. Eles são expressão
do arbítrio”. Desse modo é impossível chegar à “verdade” através da
documentação oficial. Resta então partir por outro caminho.
Partindo da noção de “esquecimento” e
distorção da Memória (Joutard, p. 223) e da impossibilidade da historiografia
centrada nos documentos escritos em relevar “todo” passado, já que “os
documentos escritos tradicionais são incapazes de dar conta das grandes
catástrofes humanas do século, no que elas têm de indizível, a violência e a
desumanização absolutas”. (op cit, p. 229), é necessário um esforço
teórico-metodológico no sentido de ampliar o alcance das pesquisas
historiográficas do Brasil recente através da abertura dos arquivos e tomar o
cuidado necessário com as certas interpretações superficiais e transformadoras
da memória. É necessária a compreensão de que a superação da ambiguidade entre
memória e história reside nas derivações memorialísticas, sendo que “o trabalho
— e também o dever — do historiador é fazer da memória um objeto da história
para expor o seu caráter construído, revelando as suas fraquezas e a sua
instrumentalização” (op cit. 231). Sendo assim, negar o papel da história oral
é supor que a história tradicional é suficiente para suprir toda a necessidade
documental no mínimo colocando a História em uma posição tão pretensiosa do que
se acusa a memória.
Para Joutard, é necessária uma reconciliação entre História e
Memória e essa “reconciliação começa com este mútuo reconhecimento dos limites
da memória e da história: investir-se, uma e outra, de modéstia, e saber que
suas aproximações do passado são parciais” (p. 233). Desse modo as pesquisas devem conciliar o tratamento dos
textos oficiais e também dos relatos orais, sobretudo dos sujeitos coadjuvantes
do processo. Discursos prontos de autoridades pré-programadas ou testemunhos
com risco de manipulação pelos “escrivãos” ou, pior, adquiridos pela via da
tortura não são uma fonte muito confiável para a pesquisa histórica, a não ser
para – parafraseando Joutard -revelar-lhes em sua fragilidade e construção ideológica.
Desse modo escutar os sujeitos marginalizados por décadas de “esquecimento”
faz-se necessário.
Os dois campos
(Memória e História) “se fortalecem a partir da mútua colaboração” (Joutard, p.
233). Antes de serem negligenciados pela História, “as incontáveis
vítimas das diversas opressões não têm o que temer da história, que irá validar
o essencial de sua palavra, mas sim de toda memória não submetida à crítica
histórica. (op. cit.). A memória “faz escutar outras vozes que iluminam os
fragmentos de realidades passadas” (op. cit., p. 234)
Referências Bibliográficas.
CABRINI. Roberto. Nos Porões da Ditadura. In: SBT
Repórter. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=xY5bBPr4XwQ acessado
em acessado em 14 de abril de 2012.
CABRINI. Roberto. Nos Porões da Ditadura. In: SBT
Repórter. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=ds1gIlxZLDs acessado em acessado
em 14 de abril de 2012.
Dossiê de João Lucena Leal – disponível em
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/denuncias.asp?Coddenuncia=89&ecg= acessado
em 14 de abril de 2012.
FICO, Carlos. Arquivos Secretos da Ditadura. In Blog www.brasilrecente.com disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=rnm39vW4c5g&feature=player_embedded
* Geógrafo pela UERJ, professor das redes do Estado e da Cidade do Rio de Janeiro e graduando em História pela UNIRIO.
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